Os que vão morrer te saúdam, João Pinharanda

OS QUE VÃO MORRER TE SAÚDAM

João Pinharanda, Amarante, 28 de Agosto de 2013

 

A memória, é o campo de trabalho de Daniel Barroca. Não tanto uma memória individual mas o trabalho lento da memória colectiva; ou ainda, a recuperação, para uma dimensão consciente, dessa memória colectiva, do seu peso. Desde os seus primeiros vídeos (Vestígio, 2002; Verdun, 2003; Saurau, 2003) e desenhos que o artista procura memórias alheias e próximas de proveniência diversa.

Esquecidos e perdidos em sótãos particulares ou vendidos a alfarrabistas, velhos filmes em película (Barulho, 2005), fotografias (Estilhaço, 2005), negativos, existem num limbo difícil de romper – como se, por estarem escondidos, negassem o seu estatuto de imagem, de geradores de informação. Sobre esses materiais estende-se, não um manto de invisibilidade – que implicaria um entendimento leve e angélico do que se esconde; mas estende-se um manto negro – porque se nega informação e se deixa supor que o que se esconde é matéria inquietante.

Há cruzamentos temáticos nestes trabalhos feitos de imagens de guerra e de imagens de família. Sem simplificar nem anular nenhum dos campos temáticos, o artista torna equivalente o estatuto de ambas as realidades: ambas campos de confronto, de equilíbrio e desequilíbrio das partes, de energia e perigo, de euforia e morte, de aliança e ruptura.

Daniel Barroca usa imagens avulsas de cada uma das realidades e devolve-as sem nos enganar acerca da negação a que estavam destinadas. O seu trabalho reconfigura os elementos de uma existência tornada menor deixando, acentuando ou inventando as marcas desse apagamento. É aqui que entra o seu trabalho de desenho e instalação cenográfica.

O desenho não é um recurso complementar, mas um modo autónomo que, por vezes, se apresenta em sobreposição às imagens apropriadas e que, outras vezes, ocupa grandes papéis com cristalografias imperfeitas, mapas incertos, sugestão de espaços ambíguos. Em qualquer dos casos o desenho é primitivo, preciso e unificador: As massas de negros tornam-se véus de densidades plurais e, as linhas, elementos de unificação de pontos específicos do olhar. Mas cada vez mais, o desenho se abre em novas soluções, internas e externas: as manchas, raspagens, sobreposições de materiais que lhe são estranhos (como placas de metal com formas geométricas) conduzem-nos, para lógicas de instalação cenográfica (mesas com recipientes e líquidos derramados, agulhas metálicas que materializam linhas e determinam pontos): Porém, em ambas as situações, cumprem sempre a mesma função: unificar, obstruir, revelar o abismo da informação.

Nesta exposição estamos perante um arquivo de fotografias sobre a guerra colonial retiradas de um álbum que era de seu pai. O tema permite a Daniel Barroca colocar-nos perante questões como a camaradagem e a solidão, a euforia colectiva ou o desgaste das relações humanas. E coloca-o a ele perante a luz e a sombra do seu próprio pai. Barroca reconfigura, assim, memórias pessoais e colectivas.

Num momento em que a cena artística portuguesa, uma geração depois do 25 de Abril, aborda finalmente de modo franco, os temas do colonialismo e pós-colonialismo, esta exposição abre mais uma via de reavaliação subjectiva e artística de uma realidade fortemente presente no nosso imaginário comum e no de muitos veteranos e familiares.

Nas imagens, aqueles homens, guerreiros em repouso, confraternizam sem a consciência de qualquer ritualização ou simbolismo, em refeições que podiam ser, sempre, a sua última ceia. E estão ali como os que, em Roma, preparando-se para entrar na arena, se dispunham a entregar a sua vida ao imperador. Ao resgatar do esquecimento cada uma destas imagens, Daniel Barroca está a reconfigurar realidades de protagonistas e de tempos passados que se sobrepõem a protagonistas e a tempos presentes – e assim tece uma complexa rede de perguntas sobre a vida e a morte, a certeza e o erro, o individual e o colectivo, a opressão e a liberdade.