All posts by admin

The distention of silence, João Silvério

THE DISTENTION OF SILENCE.

João Silvério, June 2008

 

How does one speak of a face being fondled or a head in motion that drags with it a body that has indefinitely gone astray? What sound encroaches on this figure, draining the room we find ourselves in?

There are no likely answers to these questions, just the impossibility Daniel Barroca confronts and simultaneously places before us. “Lento/Slow” is a work that has as its inception an untitled poem of the artist’s own invention. This is not an “Untitled” poem, rather a fragment extracted from the artist’s daily interaction with space and echoes and murmurs that pervade his lodgings and surroundings. This piece by Daniel Barroca was produced in Berlin, in his studio, situated within the Kunstlerhaus Bethanien edifice, where he has been working for almost a year.

With this experience, viewers meet up with a doubt, namely how to identify the sounds that reach us from outside, noises that emerge as autonomous, encircling beings which transport us to the presence of possible world. In the first instance, this is like recognizing that solitude awakens individual awareness, a tibial connection to the seemingly repetitive stimuli we replicate, automatically in order to attain the absent other. So that in the breadth of silence, deafened voices may surface, resonating amongst each other, generating a kind of labyrinth which occupies and distends itself within the space we too occupy. And which too invades us.

When first approaching this work by Daniel Barroca, viewers distinguish the human figure, but this does not serve to confine the video. Instead, this re-visitation begins with a text that adopts a universal dimension as the second part of the poem is read:

 

in order to state what you yourself are

what the world is.

 

Barroca undertakes a path that triggers the “unheimlich”.  He follows a Beckettian lineage in the sense that these utterances are directed towards a second person. An other, besides oneself, who becomes an unconditional you, potentially anyone, impregnated with the power the written word confers to the construction of the world and thought. But there is also a haunting drone to the sounds that surround us, like the persistent ring of a bell over the distance that separates us from the world and our indomitable desire to return to it. This chime calls to mind Andrei Tarkovski’s “Andrey Rublyov”[1] of 1969, a sublime evocation of artistic creation as the sole possibility of return, of reengaging with the world and, in this, with life. Barroca exposes his viewers to an extreme through the arresting image of a face devoid of a gaze, the remainder of a human figure, dampened by the pendular sound of bells or an echo without a referent. This image, removed from the familiar, moves steadily, as if out of time, revealing an incessant instability. This deceptive portrait returns indefinitely by way of dark intervals, like a syncopated luminescence, signaling the transitoriness of life. This black and white video relates not only to other previous video works by the artist, but to his practice of drawing, which does not rest in repetition, but in doggedly looking for a response by pursuing resistance, the same movements, the same hiatuses, the same circularity that transforms an elliptical curve and unveils another apparently external pursuit, absence. The distant sound we hear cautions us to our distance from the world and our detachment, it cautions us to the immediacy and diverse figurations that cheat us of our awareness of time, and the fast protagonism that we embrace as the highest from of action, one that falsifies our capacity to capture detail and distinguish an infinitesimal sound or decipher the layers employed in the fabrication of silence.

in:

www.emptycube.org

 

 

 

 

A DISTENSÃO DO SILÊNCIO.

João Silvério, Junho 2008

 

Como falar de um rosto que as mãos percorrem, ou de uma cabeça que se movimenta arrastando um corpo que se busca infinitamente? Que som trespassa essa figura esvaziando o espaço onde nos encontramos?

Não há respostas prováveis a estas perguntas, antes uma impossibilidade que Daniel Barroca enfrenta e simultaneamente nos coloca. Lento/Slow é uma obra que se inicia com um poema da sua autoria, que não tem título. Não é um poema Sem título, é um fragmento extraído da convivência diária que o artista tem com o espaço e com os ecos, ou murmúrios, que esgotam o lugar que habita e os lugares que o rodeiam. Esta obra de Daniel Barroca foi realizada em Berlim, no seu atelier, situado nos estúdios da Künstlerhaus Bethanien, onde trabalha há cerca de um ano.

A sua experiência coloca-nos perante uma dúvida, como identificar os sons que nos chegam de fora e que se constroem como entidades autónomas, que nos cercam, recolocando-nos em presença de um mundo possível? É como reconhecer, em primeira instância, que a solidão desperta na consciência de cada um, de si mesmo, uma ligação tíbia aos estímulos que aparentemente se repetem e que automaticamente começamos a replicar para conseguir obter o outro ausente. Para que na espessura do silêncio possam eclodir vozes surdas, que ressoam entre si, constituindo-se como um labirinto que ocupa e distende o espaço onde nos encontramos. Que nos invade.

Numa primeira abordagem, mais reconhecível, este trabalho de Daniel Barroca revisita a figura humana, que não se restringe ao trabalho em vídeo. Ao invés, esta revisitação começa com um texto e assume uma dimensão universal quando lemos na segunda parte do poema:

 

para poderes dizer a ti próprio aquilo que és

aquilo que o mundo é.

 

O autor percorre um caminho que nos causa estranheza. Há uma linhagem beckettiana no sentido em que aquele a quem estas palavras são dirigidas é uma segunda pessoa. Um outro, para além de si mesmo, que se transforma num tu incondicional que pode ser qualquer um de nós impregnado pelo poder que a palavra escrita confere à construção do mundo e do pensamento. Mas há também um ressoar incómodo presente nos sons que nos rodeiam, como sinos a rebate, persistindo sobre a distância que nos afasta do mundo e sobre a vontade indómita de regressar a este. Estes sinos convocam uma obra cinematográfica, Andrey Rublyov[2], evocação sublime da criação artística como a única possibilidade de retorno, de regresso à interacção com o mundo e, desta forma, com a vida. Barroca expõem-nos perante uma situação-limite que nos prende à imagem surda de um rosto sem olhar, um resto de figura humana humedecida pela sonoridade pendular dos sinos ou de um eco que já perdeu o seu referente. Esta imagem apartada do que é reconhecível move-se lentamente, como se estivesse fora do tempo, revelando uma instabilidade incessante. Este retrato deceptivo, regressa infinitamente através dos intervalos negros, como uma luminescência sincopada que nos alerta para a transitoriedade da existência. O vídeo, a preto e branco, remete-nos para outras obras videográficas do autor, mas simultaneamente para a sua prática do desenho, que não se fixa na repetição, mas persiste em procurar uma resposta prosseguindo com uma regular resistência, os mesmos movimentos, os mesmos hiatos temporais, a mesma circularidade que se transforma em curva elíptica desvelando uma outra busca aparentemente externa, a da ausência. Esta é uma pista incontrolável que nos adverte para a aparição do medo frente à diluição dos mecanismos da compreensão e da percepção. O som mais distante que podemos ouvir alerta-nos para a distância a que está o mundo e quão longínqua pode estar a nossa consciência deste. Esta obra é uma advertência à imediatez, às diversas figurações que nos iludem sobre a nossa consciência do tempo, e também ao protagonismo veloz que encarnamos como uma potência maior do agir, falseando a nossa capacidade para captar o detalhe, distinguir uma sonoridade ínfima ou decifrar quais as camadas que usamos para construir o silêncio.

 

in:

www.emptycube.org

[1] Andrei Tarkovski, Andrey Rublyov, URSS, 1969.

[2] Andrei Tarkovski, Andrey Rublyov, URSS, 1969.

Mud, João Pinharanda

MUD

João Lima Pinharanda, March 19th 2007
translated by José Gabriel Flores

 

In these pieces, Daniel Barroca handles dense, harsh materials. He moulds the clay (mud), without looking for, nor finding, any figures in it. His toil yields agglomerations of curved, perhaps spherical, but always irregular surfaces. These agglomerations absorb, into their raw, impure bodies, various materials: plastic dolls, pebbles, metallic wires… Trough them, the artist simulates the formation of rocks: in these conglomerates, he speeds up the endless duration of the Earth’s geological creation. These “sculptures”, however, are not directly presented to us. Instead, they are mediated by a photographic session, which is then further reworked in the form of slides, which are finally projected, in a continuous yet syncopated line, on a white screen. An imitation daylight bathes the pieces’ uncertain materials, but it does not enlighten us as to their nature, for each of them is only a detail from a (mutating) reality we will never be able to encompass. This form of display can convey all the threat of a voracious form that destroys the individuality of everything it incorporates. Thus the artist is constantly able to place himself/us on the verge of the incomprehensible, of non-form.

Besides this, Daniel Barroca constructs black drawings. They possess the same totalising desire that sphericity warrants. Their black surface (evocative of sludge, lumps of coal or spilt oils) is quite diversified: it displays nocturnal, metallic gleams and sinks into dim abysses, inert areas or sharp sides; it possesses subtle reliefs and smooth expanses, turned into something almost sculptural by our gaze. Around these central non-forms, black holes that threaten to suck their surroundings in, absorbing all the white of the paper, a few wisps of drawing (which we mentally connect to the metallic wires in the photographed sculptures) emerge or sink in, either freeing themselves from the illusory circularity of the black shapes or entangling themselves in it.

This artist’s experiments in drawing belong to that tradition which most thoroughly investigates the image and its rapport with the representation of the world: the Caravaggiesque narrative gloom from Baroque times absorbs the abstract dimension of the historical arc from Malevich to Ad Reinhardt; their most important Portuguese influence is Fernando Calhau, both in their early atmospheric delicacy and current rough, material asperity.

Over the mud and still of the Tagus, Central Tejo was built: order over chaos. From the formless, from life’s dregs forever trapped in darkness and filth, a project’s clarity emerged. The cold, treacherous mud has been replaced by the regular movement of machines, from which the warm flames of light rise.

These pieces by Daniel Barroca, currently shown at Central Tejo, are very recent instances of a part of his work which we can still consider as being at a laboratorial stage. They make their appearance in a Museu da Electricidade room, where the memory of the warm Ashes that fell from the upper floor still hangs heavy. Above, large Boilers turned, by means of fire, coal into energy that made Water into steam, which then set in motion the electric generators that fed the city of Lisbon.

Daniel Barroca’s drawings and sculpture-slides suggest a metaphor that places us either in a forming or dying World, before or after the climax of the Light.

 

in:

“Lama”, Fundação EDP

 

 

 

 

LAMA

João Pinharanda, Lisboa, 19 de Março de 2007

 

Nestas obras, Daniel Barroca trabalha matérias pesadas e ingratas. Molda o barro (lama) sem procurar ou encontrar nele figuras. O que percebemos é o surgimento de volumes de superfícies encurvadas, talvez esféricas, mas sempre irregulares. São volumes que absorvem, nos seus corpos de matéria bruta e impura, materiais diversos: bonecos plásticos, pequenas pedras, fios de metal… Através deles, o artista simula uma rocha em formação; acelera, nestes conglomerados, o tempo infindo da criação geológica da Terra. Tais “esculturas” não são, porém, apresentadas em directo. São mediadas por uma sessão fotográfica, retrabalhada ainda em diapositivos finalmente projectados num contínuo sincopado sobre um ecrã branco. A encenação de uma luz diurna cobre as matérias incertas dos trabalhos mas nada esclarece da sua natureza pois cada representação é capaz de nos transmitir a ameaça de uma forma voraz que destrói a individualidade de tudo o que integra. O artista coloca-se assim, sempre, à beira do incompreensível, da não-forma.

Por outro lado, Daniel Barroca constrói desenhos negros. Têm a mesma vontade totalizadora que a esfericidade justifica. A superfície negra (como lodo, pedras de carvão ou óleos derramados) é muito diversificada: tem brilhos nocturnos e metálicos ou afundamentos em abismos baços, zonas inertes ou faces aceradas; tem subtis relevos e alisamentos que a atenção do olhar torna quase escultóricos. Em torno dessas não-formas centrais, buracos negros que ameaçam sugar o que os rodeia e tomar todo o branco do papel, alguns fios de desenho (que relacionamos com os fios metálicos das esculturas fotografadas) saem ou entram, libertando-se ou enovelando-se na circularidade fingida dos volumes negros.

A tradição em que se insere a experimentação do artista como desenhador é aquela que de modo mais radical questiona a imagem e a sua relação com a representação do mundo: o tenebrismo narrativo caravaggiesco do barroco adquire a dimensão de linguagem abstracta no arco histórico que vai de Malevitch a Ad Reinhardt; no caso português, entronca em Fernando Calhau, e permite-se a possibilidade das delicadezas atmosféricas (em obras iniciais da carreira de Barroca) ou da actual aspereza brutal das matérias.

Sobre a lama e lodo do rio erguida a Central Tejo: a ordem sobre o caos. Sobre o informe, sobre restos de vida presos para sempre na escuridão e na sujidade, ergueu-se a claridade do engenho. Sobre o lodo frio e de movimentos traiçoeiros podemos ver os mecanismos regulares das máquinas e ver levantarem-se as chamas quentes da luz.

As obras de Daniel Barroca, expostas na Central Tejo, revelam um trabalho recentíssimo e que podemos ainda considerar em estado laboratorial. Surgem numa sala do Museu de Electricidade, onde pesa a memória das cinzas quentes que tombavam do piso superior. Aí, grandes caldeiras transformavam, pelo fogo, o carvão em energia capaz de levar as correntes de vapor de água a mover os geradores da electricidade que alimentava a cidade de Lisboa.

Os desenhos e diapositivos-esculturas de Daniel Barroca sugerem uma metáfora que nos situa ou num mundo em formação ou num mundo em extinção, antes ou depois do clímax da Luz.

 

in:

“Lama”, Fundação EDP

Resistência, Gisela Rosenthal

RESISTÊNCIA

Gisela Rosenthal, 2006

 

“Não posso imaginar o não-ser. O ser é sensação e imaginação. O não-ser seria algo que não seria sensação e imaginação. O imaginar não pode não imaginar, imaginar “embora”. (…) O não-ser não é imaginável.” (Friedrich Nietzsche)

 

1. Para Daniel Barroca, no início era a imagem. A imagem já lá estava, parece ter estado sempre e em constante formação/deformação de “manchas que se expandiam, compactavam e explodiam…   Um corpo em colapso, cuja existência dependia directamente da suspensão desse colapso no preciso instante em que a forma se colapsava.” (1) Filtrada e problematizada pelas sensações e emoções do artista, a imagem encontra no seu corpo uma espécie de campo de experiência da percepção em “suspensão do instante em que a linha da pele rebentava, e o interior fluía desordenadamente para fora.” (1) As suas imagens situam-se assim “no preciso instante em que o velho e o novo coexistiam num só.” (1) Uma estreita inter-relação entre percepção da imagem e da sua experiência directa pelas sensações, ambas realizadas no tempo e no espaço, define a linha trémula e insegura que o artista segue na sua reflexão, simultaneamente múltipla e una, sobre a imagem.

A exposição de Daniel Barroca, desdobra este seu incessante trabalho em volta da imagem em meia centena de desenhos e numa instalação com diapositivos intervencionados. Convergentes, os dois suportes obrigam-no, contudo, a um processamento da imagem bem diferente.

2. Na última sala da exposição, projectam-se oitenta imagens escuras. Provenientes da colecção de fotografias a preto e branco, abandonadas pelos seus autores, que o artista recuperou em alfarrabistas lisboetas e na Feira da Ladra, estas imagens alheias revelaram-se para Daniel Barroca como uma espécie de Caixa de Pandora. Originalmente as imagens de Estilhaço documentaram momentos felizes de famílias em meados do século passado, captados antes da invenção das câmaras super 8 e do vídeo. O artista intervém nelas com tinta-da-China, homogeneizando o seu fundo num denso craquelé, que recorta as figuras anónimas, agora desaparecidas por baixo de manchas negras vagamente antropomórficas. A imagem apropriada é submetida a processos de apagamento, destruição e dissolução que roçam os limites da sua existência ameaçando com o seu completo desaparecimento.

Em vão tentamos familiarizar-nos com os vultos negros, autonomizados, que se ausentam numa estranha presença e proximidade. O nosso olhar perscruta esta quase escuridão sem defesa contra sensações de perca definitiva e de luto que nos assaltam. Como colmatar a distância incomensurável entre esta ausência que é, simultaneamente, presença? Longínquas, estas formas informes tocam-nos de perto. Com a nossa mania do horror vacui, sempre prestes a substituir os buracos mais negros pela projecção de mil fantasmas, é-nos difícil de simplesmente perceber a imagem desconhecida / irreconhecível.

3. Este seu trabalho sistemático de redução da imagem onde o preto se alastra como ameaça de aniquilação total, mais óbvio em vídeos anteriores e nesta instalação, encontra, paradoxalmente, uma expressão ainda mais ambígua nos desenhos, ou melhor, nos vestígios que ficam do acto de desenhar de Daniel Barroca. Sem referência a imagens noutros suportes, pode ficar a dúvida se o pincel e o gouache ou o carvão não se arriscam, pelo contrário, na prática de um constante devir, num eterno momento de configuração das coisas antes que os nomes e os olhares as cristalizem. Mas a grande coerência da obra, patente por entre os diferentes tratamentos da imagem, confirma que, mais do que de um criar ex nihilo, trata-se de um desfazer do trabalho de uma Penélope qualquer que, com uma teia densa e impenetrável cobriu há muito o fundo que é anterior e origem de todas as imagens sem ser, ele, imagem.

Seja como for, os desenhos mantêm-se neste movimento perpétuo, neste acto contínuo do criar e desfazer, salvando o tesouro roubado, por um lado, do seu regresso fatal ao caos, por outro, da sua profanação na fixação pela convenção do olhar vigente neste mundo. É este o prodígio do desenho de Daniel Barroca, onde a mancha e o traço deixados pela mão, oscilam por entre a cristalização e o informe, num equilíbrio ténue e precário, que remete, com grande naturalidade, para a unicidade primordial, para esse fundo misterioso donde nascem todas as coisas e onde todas as coisas se dissolvem.

4. Ainda neste seu último limiar, a imagem confirma o seu poder ilimitado sobre nós. Transforma-se assim, na sua permanente decepção das nossas expectativas de re-conhecer algo, num antídoto contra a voracidade das imagens na nossa contemporâneidade. Iludindo a nossa percepção convencional, as imagens de Daniel Barroca ligam ao questionamento desta última um momento de perplexidade que, como um relâmpago, banha em luz um vasto campo de percepção pouco explorado.

 

(1) Ver texto de Daniel Barroca neste catálogo

 

in:

“Estilhaço”, Fundação Carmona e Costa / Assírio & Alvim

ISBN 972-37-1081-1

 

 

 

 

WIDERSTAND

Gisela Rosenthal, 2006

 

 

“Ich kann mir das Nichtsein nicht vorstellen. Das Sein ist Empfindung und Vorstellung. Das Nichtsein wäre demnach etwas, das nicht Empfindung und nicht Vorstellung ist. Die Vorstellung kann nicht nicht vorstellen, weg vorstellen. (…) Das Nichtsein ist nicht vorstellbar.” (Friedrich Nietzsche)

 

1. Für Daniel Barroca war am Anfang das Bild. Das Bild war schon da, scheint immer schon in ständiger Formung und Auflösung von “Flecken, die sich ausbreiteten, sich verdichteten und explodierten…” dagewesen zu sein. Es ist “ein Körper der zusammenbrach, dessen Existenz davon abhing,den Augenblick des Zusammenbruchs in genau dem Augenblick in der Schwebe zu halten, in dem die Form in sich zusammenbrach.” (Die Zitate stammen aus einem Text des Künstlers). Das durch die Empfindungen und Gefühle des Künstlers gefilterte und problematisierte Bild findet in seinem eigenen Körper eine Art Versuchsfeld der Wahrnehmung und wird “in dem Augenblick in der Schwebe gehalten, in dem die Linie der Haut aufbrach und das Innere ungeordnet herausfloss.” Seine Bilder haben so ihren Ort ”in dem genauen Augenblick, in dem das Alte und das Neue nebeneinanderbestehen und zu einem Einzigen werden.” Eine enge Bindung zwischen Bildwahrnehmung und den von ihr hervorgerufenenen Erfahrungen, die sich beide in Zeit und Raum abspielen, bezeichnet die zittrige, insichere Linie, der der Künstler in seinen vielfältigen und doch einheitlichen Überlegungen zum Bild folgt.

Die Ausstellungfächert dieses unaufhörliche Arbeiten am Bild in einem halben hundert Zeichnungen und einer Installation mit Diapositiven auf.          Trotz ihren Gemeinsamkeiten zwingen die beiden Techniken zu einer sehr unterschiedlichen Bildbearbeitung.

2. Im letzten Raum der Ausstellung werden 80 dunkle Bilder projeziert. Sie stammen aus der Sammlung von Schwarz-Weiss- Fotografien, die der Künstler bei Lissabonner Antiquitätenhändlern und auf der Feira da Ladra, dem Lissabonner Flohmarkt erstanden hat. Diese ihm fremden Bilder wurden für den Künstler zu einer Art Büchse der Pandora. Ursprünglich hielten die Bilder der Installation Splitter glückliche Momente aus dem Leben von Familien fest, die um die Mitte des vergangenen Jahrhunderts vor der Erfindung der Super 8 und Video Kameras entstanden. Der Künstler bearbeitet sie mit Pinsel und chinesischer Tusche und verwandelt so die Hintergründe in ein dichtes craquelé, auf dem die anonymen, halb unter schwarzen Flecken verschwundenen Figuren zu verschwommenen antropomorphen Formen werden. Die Bilder, die er sich angeeignet hat, werden verschiedenen Prozessen des Auslöschens, der Zerstörung und Auflösung unterworfen, die bis an die Grenzen ihrer Existenz gehen und ihr völliges Verschwinden riskieren.

Ohne Erfolg versuchen wir uns mit den schwarzen, sich    verselbständigenden Gestalten vertraut zu machen, die in ihrer seltsamen Gegenwärtigkeit und Nähe doch abwesend sind. Unser Blick durchdringt diese Dunkelheit ohne Halt zu finden gegen Gefühle endgültigen Verlusts und Trauer, die uns zu überwältigen drohen. Wie ist es möglich diese unermessliche Distanz zwischen dieser Abwesenheit, die gleichzeitig Präsenz ist, zu überbrücken? Aus der Ferne berühren uns dies unförmigen Formen doch unmittelbar. Unser ständiges Gefühl des         horror vacui ist nur allzu bereit die schwärzesten Löcher durch          Projektionen von tausenden von Fantasiebildern zu füllen. Es fällt uns          schwer, einfach das unbekannte / unkenntliche Bild wahrzunehmen.

3. Diese systematische Arbeit an der Reduzierung des Bildes bei der das sich ausbreitende Schwarz mit seinem völligen Auslöschen droht, ist in dieser Installation und in früheren Videos offensichtlicher, findet jedoch auch einen fast noch widerspruchsvolleren Ausdruck in den Zeichnungen oder, um es genauer zu sagen, in den Spuren, die vom Zeichenakt Daniel Barrocas auf dem Papier zurückbleiben. Ohne den Hinweis auf Bilder in anderen Techniken, kann bei den Videos und Installationen Zweifel aufkommen, ob Pinsel und Tusche oder Kohle nicht riskieren in ihrer Praxis eines ständigen Werdens und Vergehens, im ewigen Augenblick der Formung der Dinge, bevor Namen und Blicke sie kristallisieren, in der Schwebe zu bleiben. Aber die strenge Koherenz des Werkes, die bei allen verschiedenartigen Bildbehandlungen offensichtlich bleibt, bestätigt dass es sich hier nicht um ein Schaffen ex nihilo handelt, sondern um das Auftrennen der Arbeit irgendeiner Penelope, die vor langer Zeit den Urgrund, der Urspung aller Bilder ist, ohne selbst Bild zu sein, mit einem dichten und undurchdringlichen Gewebe bedeckt hat.

So verbleiben die Zeichnungen in ständiger Bewegung, in einem fortdauernden Akt des Schaffens und Zerstörens und retten den geborgenen Schatz einerseits vor der drohenden Rückkehr ins Chaos, andererseits vor der Entweihung in der Fixierung durch die Konvention        der in der Welt vorherrschenden Wahrnehmung. Das ist das Wunder der Zeichnungen von Daniel Barroca, wo die von der Hand hinterlassenen Flächen und Striche zwischen Kristallisation und Formlosigkeit in einem labilen und schwankenden Gleichgewicht schweben, das mit grosser Selbstverständlichkeit auf die urspüngliche Einheit verweist, auf den geheimnisvollen Grund aus dem alle Dinge hervorgehen und in den alle Dinge zurückkehren.

4. Auch an dieser letzten Schwelle behält das Bild seine unbegrenzte Macht über uns. Es verwandelt sich so, uns ständig täuschend in unserer Erwartung etwas zu erkennen, in ein Gegengift gegen die unersättliche Gefrässigkeit der Bilder unserer Gegenwart. Indem sie unsere konventionelle Wahrnehmung ausser Gefecht setzen, verbinden sie ihr Infragestellen des Bildes an sich mit einem Augenblick des bestürzten Innehaltens der, wie ein Blitz, ein weites, wenig erkundetes Wahrnehmungsfeld ans Licht bringt.

 

 

 

 

Parfois, le porno, c’est bon, Ricardo Nicolau

PARFOIS, LE PORNO, C’EST BON [1] 
Memory, pornography, and blindness in the latest films of Daniel Barroca

Ricardo Nicolau,  March 2005
Translated by Ana Yokochi

 

Every one of us has watched TV shows with the sound turned off. We only have to remind ourselves of the experience of talking to someone in a bar while peeking at the pictures parading behind that person’s back – and many bars keep television sets constantly turned on, yet muted, while some other music plays in the background. In a way, those images work as a sort of continuous visual track – much in the same way as background music –, and risk being called ‘elevator’ or ‘airport images’, just like what happened to the music. We all know how ridiculous and perplexing, almost foolish, those images can be – especially when combined with a sound track that takes them out of context. The only chance to escape the grotesque would imply our filling the absence of sound with our memory. But even if we could, we would be forced to admit that sound has a fundamental role, as much as the unfolding of the images, in the building of narrative possibilities[2].

The experience of muted visuals also implies the awareness of the obscene character of certain images, or of certain shots, with their dissecting role amplified by the lack of sound. Watching a close-up of a talking face, gestures we do not understand, an inventory of expressions, everything that is softened by the regular perception experience becomes almost pornographic.

* * *

Daniel Barroca (Lisbon, 1976) has worked in a parallel and in an articulate way with drawing and video. His works on paper and other media pursuit a common interest about our perceptive apparatus and in the role of memory in the filling the gaps of sensory or narrative character. Hence, and against a kind of doxa of pure visual imagery, the artist always rejects the most accurate, clear and focused images. Daniel confronts our desire of wanting to see every thing, in every way and from all angles – which is widely sponsored by many examples of image regimes, from photography to cinema – with filters, stains, frictions to common visualisation.

His two latest works, filmed footage that was later digitalised, work as a series (perhaps to be continued?). The images were not filmed by the artist but were substantially transformed by him – to say the least, as we shall soon find out why. What we see at first, while our perceptive apparatus adapts, is a vibration translated into many spots – as if we had repeatedly rubbed our eyes, or as if we had kept them shut under an extremely intense light –; or as if in a cinema museum we were watching the projection of film fragments in a complete state of decay. We watch an endless parade of black spots on the screen, spreading out or shrinking, ruthlessly filtering a light source that never gets to show the image. For a while we only realise there is a tension between the bursts of energy and the pure abstraction, and latent figuration. Slowly, we begin to understand that the spots hide (for they do not hide completely) a series of men and women dressed in out-of-fashion swimming suits and who are enjoying some leisure time by a swimming pool. The light source is none other but the sun, which seems scorching and typical of a harsher climate than the Portuguese.

Daniel started of with a home movie, recorded on super 8, which he found accidentally, forgotten in a projector. These are the images of a group of people doing what is usual done at a private swimming pool (a playground par excellence): mostly nothing. They dive, they swim, they chat, and they sunbathe – half a dozen sleepy numb-limbed cats. In terms of narrative, these images captured on a single set and with very few angles are, of course, tremendously insipid.

The spots that appear in the movies that Daniel Barroca now exhibits at the Politécnica were painted by the artist directly on the film, meticulously placing them in what resembles a real jewellery work. The film was then translated into digital form. From a strictly visual point of view, the results seem to echo some experiences mainly from the 1960s and 70s that are known under the generic designation of Experimental Cinema[3]. However, this work by Daniel Barroca, in spite of some obvious formal approaches, couldn’t be further away from a nostalgic revisiting of some cinema of the past – independently of his interest in films such as the ones of Jonas Mekas or Stan Brakhage. Let us start with the resemblance: the absence of narration, the settling of a rhythm of vision alienated from the story, the attention to the physical reality of the film (i.e. the actual film), a disjunctive treatment of the image/sound. The obvious distances: Daniel isn’t interested in reflecting about the peculiarities of the medium or in exploring all the possibilities of the devices for recording and projecting films. These are features common to many experiments of the so called experimental cinema, and which coincide under two other umbrella-definitions that have catalogued film and video: structuralist cinema and expanded cinema, two forms of intended abortion of the magic of cinema[4].

In these movies, it is clear that there is a targeting of the film, of its physical element, but unlike what happens with many of the so-called experimental films, the artist doesn’t catalogue potential effects during the shooting and editing of the images: overexposure, out-of-focus, moving the camera around; and of the recording and projection devices, intermittent stills and frantic sequences… there is an unending list.

It seems clear to me that the two main qualities of these films near the swimming pool, which fascinated the artist, correspond to a confluence between the intimate character of the images – recorded to be seen in an exclusively domestic context – and the total loss of references that could give them any context, or insert them in a specific story (they are shreds of personal stories), after having been made to circulate outside their particularity. We must also remember that they are silent – and I haven’t yet mentioned a fundamental issue: Daniel Barroca decided to call these video works Barulho (Noise) – but we will come to that.

* * *

We immediately realise, although the more or less expanded and intermittent blackness allows us to see very little of the original film, that we are before a home movie: the characteristic grain of the image, the roughness of the angles, the unsophisticated editing and the sunburned colours typical of the home movies of the sixties and seventies.

The first time I saw those images, with the film already heavily altered, they seemed, even if only for a moment, excerpts of a pornographic movie – the preamble, the small piece of narrative just before the central theme. Why? Mostly, I believe, due to the concentration of half naked bodies, the granularity of the image, the anachronism of the hairstyles and the few clothes that show (as if porn and obsolescence always came together), and the thin narrative. However, these explanations, which are somewhat obvious, don’t seem to be enough. I believe the main reason lies in the absence of sound matching the images (expectable, at least) – this is what was intolerable –, in the fact that I couldn’t hear the dialogue, the interpellations. Because I was denied access to a strictly anecdotic side, to a narrative, even a bad one –, and because I was before a mere display, a mere parade. At some point, this more or less thorough, mute inventory creates an embarrassment, a feeling of having intruded (watching everything without jeopardising the eyes).

By obliterating the images, by making them disappear step by step, but always leaving some traces behind, Daniel Barroca is also placing barriers to the visualization. In this way, he is enhancing this desire to see everything that eventually turns into obscene – and when I speak of obscenity, of pornography, I’m not strictly referring to a specific subgenre of the movie industry, but to a parity of regime between porn and movies (a kind of ontological obscenity of cinema, that relies on the close-up, on the parade, on the thoroughness of the inventory, on the sponsoring of the need to see everything)[5].

Certain details, when watched carefully, may give away the origin of the movie: the intense light, the details of the surrounding landscape, an ease that was unusual in Portugal in the 1960s/1970s, the uninhibited bodies… all these indicate that the images were recorded in a former Portuguese colony.

It is interesting to realise that the oblivion of our colonial past, a part of our history that has been subject to little reflection – and rarely used by the artists (to the point that the few exceptions seem to me to have been automatically overrated) – has its counterpoint in an avid collecting behaviour from the so-called ‘retornados’[6]. There is an intense hunt for these movies, photographs, postcards, and it is this search that has made these images of the former colonies one of the most prized among resellers and second-hand book sellers. There is a niche of collectors who are completely nostalgic of that lost world and who are willing to pay the necessary price to fill in all eventual gaps in their memories – even if, paradoxically, this means that family albums are torn apart, and that previous collections are shuffled and new orders and classifications are created. The fact is that, through photographs and postcards, there is an incredible amount of micro-narratives in circulation, shreds of individual histories that are impossible to refit into the set that gives them a full and unique meaning. For an iconography of Portugal overseas, the images of swimming pools cannot be undervalued, either due to their quality or due to quantity. On the reverse of some swimming-pool postcards, namely from the former colonies, we can usually find: the typical best wishes for the recipients, personal and season’s greetings, the scheduling of rendezvous, accounts of parties with other family members or mutual friends, as well as of trips across the country or nearby countries (such as South Africa), notices of new addresses and telephone numbers, and, of course, notes of homesickness – obviously more frequent in this case than in the postcards sent while vacationing (a view of the swimming pool and the hotel, often with an X marking the exact window of the room where the vacationer is staying in).

Therefore, we have the summing up of memory as an omnipresent scenario in these videos by Daniel Barroca. In two different, but complementary, senses: on the one hand, the artist is interested in the gaps that drive (as much as they prevent) the reconstruction of other people’s stories. This is why he is devoted, although not as compellingly or as rigorously as a collector, to save photographs torn from family albums and sold separately – particularly for what they imply to the editing and reconstructive instinct of our own memory. It is important to remember that Barroca was never interested in using this domestic material to join the vast number of artists who chose the diary-narcissistic register, or the support of a lack of distinction between the fictional and documental registers, an uninteresting and deadbeat route. On the other hand, and because it renders the images it projects completely evanescent and almost unidentifiable, the artist keeps our perceptive system permanently alert by mobilising our memory in an attempt to stabilise a material that is absolutely incomplete.

These more recent works, while never allowing full visibility, but rather traces and hesitations, much like his less recent video productions – such as Vestígio (2002) and Saurau (2003) – aren’t far from the very operation of our memory, with its synapses, gaps, and suggestions[7]. As for his use of sound, almost always an additional element of friction that doesn’t correspond to our expectations in face of the images, it also contributes to the further frustration of our narrative desire, and to stress a brutal feeling of incompleteness. In previous videos, even in the rare occasions in which recognisable sentences are heard – as happens in Inscrita (2000) – the audio component always ends up becoming an undistinguishable and undecipherable noise. In the latest works – called Barulho –, Barroca continues his disjunctive work of sound and image, presenting noises that can be associated with musical forms of suggestion, or of hypnosis (the amplification of the sound of wind on a microphone). Curiously, this is the work in which image has a more important role, while the sound seems to only stress even further its absolute silence.

 

Notes:

[1] The title was borrowed from the last page of the French magazine Les Inrockuptibles that takes up the theme pornography, and is called Cul-Culte. Mauvaise nouvelle pour les nouveaux puritains: parfois, le porno, c’est bon. [Butt-Cult. Bad news for the new Puritans: sometimes porn is good.]

[2] I remember a character in the last novel by Javier Marias, Tu Rostro Mañana, who, from his window, late at night, saw a neighbour that danced frantically, most of the times alone, sometimes accompanied. Faced with this scenario, and in order to exclude madness from the scene, the character felt compelled to try to guess the music that would cause a certain series of movements – and the music catalogue spreads out at the pace of the dancer’s versatility, up to the point when the author devotes a whole page of the novel to an inventory of potential soundtracks for spontaneous movements. According to Marias’ description: “This isn’t a professional rehearsing, not at all, that is certain: he is usually wearing his street clothes, sometimes he even keeps his tie on, as if he had just walked in through the door after a day’s work, and his impatience only allowed him to take off his jacket and to roll up his sleeves…. and his dancing steps are spontaneous, improvised, not wanting in harmony or grace, but I would say without measure, nor compass, nor study, just inspired by the music which I can’t hear. It’s strange to see him move at different rhythms without ever listening to the music that conducts him, I keep myself busy trying to guess what it his, mentally playing it, in order to – how should I put it – spare him form the ridicule of dancing in silence, my silence. The sight would be incomprehensible, incongruous, almost demented if we didn’t supply it with our musical memory – or if we didn’t find and play the guessed record, if we have it close at hand”, translated from Marias, Javier, Tu Rostro Mañana. 1 Fiebre Y Lanza, Santanilla Ediciones Generales, S. L., Madrid, 2004, pp. 53, 54.

[3] Cf. Hamlyn, Nicky, Film Art Phenomena, British Film Institute, London, 2003 and Parfait, Françoise, Vidéo: Un Art Contemporain, Éditions du Regard, Paris, 2001, namely chapter 2: «Vidéo et Cinéma Experimental. Des Différences et des Répétitions», pages 55 – 88.

[4] Cf. Krauss, Rosalind, A Voyage in the North Sea. Art in the Age of the Post-medium Condition (Thames & Hudson, London, 2000), namely its approach to structuralist cinema, which is associated with Modernism as an attempt to reduce the medium to its patent physical qualities. The author specifically refers the Anthology Film Archives, a location programmed by Jonas Mekas, in the New York Soho, where soviet, American independent, and structuralist movies were projected; Structuralism was a largely divulged and promoted current, even beyond the strict boundaries of cinema, since many artists, directors and composers, amongst which Richard Serra, Robert Smithson, and Carl Andre, gathered there.

[5] Cf. Lardeau, Yann, «Le Sexe Froid. Cinéma et Pornographie», in AA, Théories du Cinéma, Cahiers du Cinéma, Paris, 2001, pp. 135 – 155. Originally published in Cahiers du Cinéma n.º 289, June 1978.

[6] The Portuguese who left the colonies in Africa and returned to Portugal during and after decolonization became known as ‘retornados’. (NT)

[7] This summoning up of memory and of all the perceptive devices is fundamental to Daniel Barroca, and I think that one of the motives for digitalising the film (Daniel Barroca’s choice not to project the film in the original Super 8) is due to the fact that – apart from practical issues, and the maintenance of devices during an exhibition – as McLuhan explained, the film (like photography) is an essentially visual medium, while television and video are media that imply a constant filling of gaps. This happens because they have a different, lower, definition, based on dots and lines, which makes the contours blander, and presupposes a more intense involvement from the audience. For this author, video isn’t essentially visual but tactile, because it summons up the nervous system in an exemplary way.

 

 

 

 

PARFOIS, LE PORNO, C’EST BON [8]
Memória, pornografia e cegueira nos últimos filmes de Daniel Barroca

Ricardo Nicolau,  March 2005

 

Já todos assistimos aos mais diversos programas de televisão sem som. Basta pensarmos na experiência de falarmos com alguém num bar enquanto espreitamos o desfile das imagens por cima do ombro em frente – e são muitos os cafés que mantêm um televisor permanentemente aceso, ainda que mudo, e com uma qualquer música ligada. Estas imagens funcionam, de certa forma, como uma espécie de banda visual contínua – como antes tínhamos a música de fundo sonoro –, e arriscam-se, como foi aquela música, a ser apelidadas de imagens de elevador, ou de aeroporto. Todos sabemos, portanto, o quanto aquelas visões podem ser ridículas, incompreensíveis, sandices quase – ainda para mais quando combinadas com uma banda sonora que as descontextualiza. A única hipótese de escapar ao grotesco implicaria colmatarmos a ausência de áudio com a nossa memória, mas mesmo que o conseguíssemos seríamos obrigados a admitir que o som tem um papel fundamental, tanto quanto o desenrolar das imagens, para a construção de possibilidades narrativas[9].

A experiência da visualização muda implica ao mesmo tempo a consciência do carácter obsceno de algumas imagens, ou de alguns planos, com o seu papel de dissecação amplificado pela lacuna do som. Ver um grande plano de um rosto que fala, gestos que não compreendemos, inventários de expressões, tudo o que a comum experiência perceptiva atenua, torna-se quase pornográfico.

* * *

Daniel Barroca (Lisboa, 1976) é um artista que tem trabalhado de forma paralela e articulada o desenho e o vídeo. Os seus trabalhos, sobre papel e noutros suportes, têm em comum o interesse pelo nosso aparato perceptivo, e pelo papel da memória no colmatar de falhas de ordem sensorial e narrativa. Por isso, e contra uma espécie de doxa da visualidade pura, o artista recusa sempre a imagem mais precisa, mais clara, mais nítida. Contra o nosso desejo de tudo querer ver, e de todas as formas desde todos os ângulos – e que é, em larga medida, patrocinado por muitas realizações de diversos regimes de imagem, desde a fotografia ao cinema – Daniel contrapõe filtros, máculas, atritos na comum visualização.

Os seus dois últimos trabalhos, em filme e posteriormente digitalizados, funcionam como uma série (não sei se esgotada) e partem de imagens que não foram captadas pelo artista, mas que ele transformou – e isto é dizer pouco, já veremos porquê – de forma substancial. O que vemos, de início e enquanto o nosso aparato perceptivo se adapta, é uma vibração, que se traduz em muitas manchas – como se tivéssemos esfregado repetidamente os olhos, ou os mantivéssemos fechados sobre uma luz extremamente intensa –; ou como se num museu do cinema visionássemos a projecção de fragmentos fílmicos em absoluto estado de ruína. Assistimos a um desfilar ininterrupto de manchas negras no ecrã, que ora alastram ora encolhem, e que filtram impiedosamente uma fonte luminosa que nunca chega a tingir a imagem. Durante algum tempo apercebemo-nos apenas de uma tensão entre descargas de energia, e entre a pura abstracção e uma figuração latente. Aos poucos, vamos percebendo que as tais manchas escondem, (porque) nem sempre completamente, uma série de homens e mulheres, vestidos com fatos de banho fora de moda e a desfrutar de umas horas mortas numa piscina. A tal fonte luminosa não é mais do que o sol, que parece escaldante e típico de climas menos amenos que o português.

Daniel partiu de um filme caseiro, gravado em super 8, que encontrou por acaso esquecido num projector. São imagens de um grupo numa piscina particular, a fazer o que é comum fazer-se numa piscina (palco do ócio, por excelência): quase nada. Mergulham, nadam, conversam, secam-se, apanham sol – meia dúzia de gatos dormentes, de membros entorpecidos. Narrativamente, estas imagens captadas num único cenário e através de muito poucos planos, são, é claro, de uma insipiência tremenda.

As manchas que aparecem nos filmes que Daniel Barroca agora expõe na Politécnica foram inscritas pelo artista na própria película, que pintou meticulosamente num autêntico trabalho de ourives. As películas foram depois digitalizadas. O resultado, de um ponto de vista estritamente visual, parece ecoar algumas experiências, levadas a cabo nas décadas de 60 e 70 principalmente, conhecidas pelo nome genérico de Cinema Experimental[10]. Mas este trabalho de Daniel Barroca não poderia estar mais longe, apesar de algumas óbvias aproximações formais, de uma revisita nostálgica a algum cinema passado – por mais que lhe interessem, por exemplo, os filmes de Jonas Mekas, ou de Stan Brakhage. Comecemos pelas aproximações: a ausência de narração, a instauração de uma rítmica do olhar alheia à história, a atenção à realidade física do filme (i.e. à película), um tratamento disjuntivo da dupla imagem/som. As óbvias distâncias: a Daniel não interessa reflectir sobre as particularidades do medium ou esgotar todas as possibilidades dos aparatos de registo e projecção de filmes – qualidades comuns a muitas das experiências do filme dito experimental e que em alguns pontos coincidem com terreno demarcado por outros dois grandes guarda-chuvas que catalogaram trabalhos em filme e em vídeo: o cinema estruturalista e o cinema expandido, duas formas de pretenso aborto do feitiço do cinema[11].

Nestes filmes de Daniel Barroca é claro que existe um apontar para a película, logo para a sua componente física, mas, ao contrário de muitos dos filmes ditos experimentais, o artista não se dedica a catalogar potenciais efeitos de captação e edição de imagens: sobre-exposições, desfocagens, alterações na posição da câmara e nos próprios aparelhos de registo e de projecção, intermitência entre imagens fixas e desfilar frenético… a lista seria quase inesgotável.

A mim parece-me claro que as duas características principais destas filmagens da piscina, e que fascinaram o artista, correspondem a uma confluência entre o carácter íntimo das imagens – feitas para ser vistas num contexto exclusivamente caseiro – e a total perca de referências, depois de postas a circular de forma avulsa, que as possam contextualizar, ou inserir numa história particular (são farrapos de histórias pessoais). Também é bom não esquecer a sua mudez – e ainda não referi um dado fundamental: Daniel Barroca decidiu intitular estes trabalhos em vídeo de Barulho – mas já lá iremos.

* * *

Percebemos imediatamente, apesar do negro mais ou menos expandido e mais ou menos intermitente deixar ver muito pouco da película original, que estamos perante um filme de família: pelo grão particular da imagem, a crueza dos planos, a pouca sofisticação da montagem, as cores queimadas que caracterizam as imagens caseiras dos anos 60 e 70.

A primeira vez que vi aquelas imagens, já com o imenso trabalho de inscrição sobre a película, pareceram-me, ainda que por instantes, extractos de um filme pornográfico – o preâmbulo, a migalha de narrativa que antecede o assunto central. Porquê? Acredito que em grande parte, é claro, pela concentração de corpos semi-nus, pelo grão da imagem, pelo carácter anacrónico dos penteados e das poucas roupas exibidas (como se porno e obsolescência estivessem sempre unidos), pela míngua narrativa. Mas estas explicações, que têm alguma coisa de óbvio, não me parecem suficientes. Creio que o motivo principal residia na ausência do som correspondente às imagens (expectável, pelo menos) – estava aqui o intolerável –, no facto de não escutar os diálogos, as interpelações. Por me estar vedado o acesso a um lado estritamente anedótico, a uma qualquer narrativa, ainda que esfarrapada – e portanto estar perante uma mera exibição, um puro desfile. Este inventário mais ou menos exaustivo, mudo, implica às tantas o incómodo de nos sentirmos intrusos (a ver tudo sem colocar os olhos em perigo).

Ao obliterar as imagens, ao fazê-las desaparecer pouco a pouco, mas deixando sempre alguns vestígios, Daniel Barroca está simultaneamente a colocar obstáculos para a sua visualização e a sublinhar esse desejo de tudo ver que às tantas as institui como matéria obscena – e se falo em obscenidade, ou em pornografia, não me refiro estritamente a um subgénero particular de cinema, mas a uma identidade de regime entre o porno e o filme (uma espécie de obscenidade ontológica do cinema, assente no grande plano, no desfile, na exaustão do inventário, no patrocínio da necessidade de tudo ver)[12].

Alguns detalhes, se virmos com atenção, podem denunciar a proveniência do filme: a luz intensa, pormenores da paisagem envolvente, uma descontracção pouco vulgar no Portugal dos anos 60/70, a desinibição dos corpos… tudo leva a crer que as imagens foram captadas numa ex-colónia portuguesa.

É interessante pensar que o esquecimento do nosso passado colonial, uma parte da nossa história pouco reflectida – e pouco utilizada pelos artistas (ao ponto das poucas excepções me parecerem automaticamente sobrevalorizadas) – tem como contraponto um ávido coleccionismo por parte dos chamados retornados. É ávida a procura de filmes, fotografias, postais… ao ponto das imagens das ex-colónias serem de longe as mais inflacionadas por revendedores e alfarrabistas. Há um nicho de coleccionadores absolutamente nostálgico daquele mundo perdido e perfeitamente disposto a pagar o preço necessário para colmatar todas as eventuais falhas da sua memória – ainda que isso implique, paradoxalmente, que se estraçalhem álbuns familiares, e que se tergiversem anteriores colecções e se inventem novas ordens e classificações. O facto é que circulam, entre fotografias e postais, uma quantidade tremenda de micro-narrativas, de fiapos de histórias individuais, impossíveis de ser reencaixadas no conjunto que lhes dê um pleno e único sentido. Para uma iconografia do nosso Portugal-lá-fora não são de menosprezar, em qualidade e em número, as imagens de piscinas. Voltando do avesso alguns postais de piscinas, nomeadamente das ex-colónias, encontram-se normalmente: os típicos votos de que os destinatários se encontrem bem, o assinalar de datas festivas – pessoais e do calendário religioso –, a marcação de encontros, relatos de festas com familiares e amigos comuns, bem como de excursões pelo país e pelos países vizinhos (como a África do Sul), actualização de moradas e números de telefone e, é claro, a expressão de saudades – obviamente mais comum neste caso do que nos postais que se enviavam normalmente de férias (a vista da piscina e do hotel, muitas vezes com uma cruz feita a caneta a assinalar a precisa janela do quarto onde está alojado o veraneante).

Temos, portanto, a convocação da memória como cenário omnipresente nestes vídeos de Daniel Barroca. Em dois sentidos, distintos mas complementares: por um lado, ao artista interessam as lacunas que impelem a (tanto quanto impedem) reconstituir histórias alheias – por isso se dedica, embora sem a compulsão e o rigor do coleccionador, a guardar fotografias arrancadas a álbuns familiares e vendidas avulso –, muito pelo que elas implicam de instinto de montagem e reconstituição que implica a nossa própria memória (e importa salientar que a Barroca nunca interessou utilizar este material caseiro para engrossar o vasto número de artistas que optam pelo registo diarístico-narcísico, ou pelo patrocínio de uma indistinção entre registo ficcional e documental, um caminho pouco interessante, além de esgotado). Por outro lado, e visto tornar as imagens que projecta completamente evanescentes e quase inidentificáveis, o artista mantém em alerta permanente o nosso sistema perceptivo, mobilizando a nossa memória numa tentativa de estabilizar material absolutamente incompleto.

Estes últimos trabalhos, nunca apostando na plena visibilidade, mas em indícios e hesitações, aliás como a sua produção em vídeo menos recente – estou a lembrar-me de Vestígio, de 2002 e Saurau, de 2003 –, não andarão longe do próprio funcionamento da nossa memória, com as suas sinapses, lapsos e sugestões[13]. Como a utilização que faz do som, quase sempre um elemento adicional de atrito, não correspondendo ao expectável atendendo às imagens, também contribui para frustrar ainda mais o nosso desejo narrativo e para sublinhar uma brutal sensação de incompletude. Em vídeos anteriores, mesmo nos raros casos em que se ouvem frases reconhecíveis – é o caso de Inscrita (2000) – a componente áudio acaba sempre por se tornar ruído indistinto e impossível de descodificar. No caso destes últimos trabalhos – intitulados Barulho –, Barroca continua o trabalho de disjunção entre som e imagem, apresentando ruídos que se podem associar a formas musicais de sugestão, ou de hipnose (a ampliação do som do vento num microfone). Curiosamente, é a sua obra em que a imagem tem um maior protagonismo, parecendo servir o áudio para sublinhar ainda mais o seu absoluto silêncio.

 

 

Notas:

[8] Título pedido de empréstimo a uma secção da revista francesa Les Inrockuptibles, que ocupa a sua última página, fala de pornografia, e é denominada Cul-Culte. Mauvaise nouvelle pour les nouveaux puritains: parfois, le porno, c’est bon.

[9] Lembro-me de um personagem do último livro de Javier Marias, Tu Rostro Mañana, que via da sua janela, já tarde à noite, um vizinho da frente que dançava freneticamente, sozinho a maioria das vezes, algumas acompanhado. Perante este cenário, e para afastar a demência da cena, aquele personagem sentia-se obrigado a adivinhar a música que poderia dar origem a uma determinada série de movimentos – e o catálogo musical alastrava ao ritmo da versatilidade do dançarino, ao ponto do autor dedicar uma página inteira daquele romance a um inventário de potenciais bandas sonoras para movimentos espontâneos. Descreve Marias: “Não é um profissional que ensaie, de modo algum, isso é certo: costuma estar vestido como na rua, às vezes mesmo com gravata e tudo, como se tivesse acabado de entrar pela porta depois do dia de trabalho e a sua impaciência lhe tivesse consentido apenas tirar o casaco e arregaçar as mangas […], e os seus passos de dança são espontâneos, improvisados, não carentes de harmonia e graça mas eu diria que sem muita medida nem compasso nem estudo, os que de cada vez lhe inspira a música que não oiço […]. É estranho vê-lo mover-se a diferentes ritmos sem nunca ouvir a música que o conduz, entretenho-me a adivinhá-la, a pô-la mentalmente, para – como dizer – evitar-lhe o ridículo de dançar em silêncio, perante o meu silêncio, a visão resulta incompreensível, incongruente, quase demente se não a suprimos com a nossa memória musical – ou encontramos e pomos o disco intuído, se o temos à mão”, in Marias, Javier, Tu Rostro Mañana. 1 Fiebre Y Lanza, Sntanilla Ediciones Generales, S. L., Madrid, 2004, pp. 53, 54 [tradução livre do autor deste texto].

[10] Cf. Hamlyn, Nicky, Film Art Phenomena, British Film Institute, Londres, 2003 e Parfait, Françoise, Vidéo: Un Art Contemporain, Éditions du Regard, Paris, 2001, concretamente o capítulo 2 : « Vidéo et Cinéma Experimental. Des Différences et des Répétitions », pp. 55 – 88.

[11] Cf. Krauss, Rosalind, A Voyage in the North Sea. Art in the Age of the Post-medium Condition (Thames & Hudson, Londres, 2000), nomeadamente a sua abordagem ao cinema estruturalista, que associa ao modernismo enquanto tentativa de reduzir o medium às suas qualidades físicas manifestas. A autora refere-se especificamente ao Anthology Film Archives, local programado por Jonas Mekas, situado no Soho, em Nova Iorque, e onde se visionavam filmes soviéticos, filmes independentes americanos e filmes estruturalistas, corrente largamente divulgada e promovida, mesmo para além do estrito campo do cinema, visto que aqui se reuniam diversos artistas, realizadores e compositores, de que destaca Richard Serra, Robert Smithson e Carl Andre.

[12] Cf. Lardeau, Yann, « Le Sexe Froid. Cinéma et Pornographie », in AA, Théories du Cinéma, Cahiers du Cinéma, Paris, 2001, pp. 135 – 155. Texto publicado originalmente in Cahiers du Cinéma n.º 289, Junho 1978.

[13] Esta convocação da memória e de todo o aparato perceptivo é fundamental para Daniel Barroca, e penso mesmo que um dos motivos para a digitalização da película (para Daniel Barroca optar por não projectar o filme Super 8) se prende – para além de questões de ordem prática e de manutenção de aparelhos durante uma exposição – com o facto de, como explicou McLuhan, o filme (como a fotografia) ser um medium essencialmente visual, enquanto o a televisão e o vídeo são media que implicam um constante preenchimento de lacunas. Isto porque têm uma definição diferente, mais baixa e assente em pontos e linhas, o que torna os contornos mais difusos e pressupõe um envolvimento do espectador mais intenso. Para aquele autor, o vídeo não é essencialmente visual mas táctil, no sentido em que convoca exemplarmente o sistema nervoso.

 

The image, between aura and trace, Nuno Faria

THE IMAGE, BETWEEN AURA AND TRACE

Nuno Faria, 2004
translated by José Gabriel Flores

 

The image lies at the centre of Daniel Barroca’s artistic thought. It is not, however, an icon; it is rather an image that is constantly filtered through the body, the artist’s own body, and constantly called into question as a material and emotional entity, as both presence and memory.

A video work from 2000 is especially emblematic of that deconstruction process, In it, a diluted image of the artist writes on a notebook, while the distorted (elongated in time) sound of a voice reading a text is herd. The time of the image was also diluted, to make the video like it was shot on film.

In Saurau (2003), the artist uses the soundtrack from another video (Vestígio, 2002), which presented a sequence of old photographs. The presence of the voice (as murmur) and the duration of the images (as trace) evoke a past time, unmistakably and strangely defining a relationship with death of uncertain origin. In his video Inscrita (2001) Daniel Barroca quotes the following words by Benjamin: “The original problem of language is its magic”.

That is why, in his work, he uses so many different media, which constantly contaminate each other: photography, video, sound, words, painting. While photography holds a very special status, “acting as prime mover for the drawing and painting work” (Daniel Barroca selected a certain number of photographs from among the hundreds he had got from curiosity shops and organised them into series, thoroughly working and commenting upon them, creating a context for them), creating an image bank, and video is the operative medium that more fitly express the slow progress of the image across space and time, drawing seems to be the element that gives the work conceptual unity.

Drawing, or rather the act of drawing, gains central relevance in the artist’s working process. It is through drawing, seen as an obsessive means of investigating the limits of language, that Daniel Barroca has carried out his immersion in the obscure meanders of the image.

Daniel Barroca works around traces. Once an image has been filtered from the reality to which it originally referred, erased, recontextualised, stretched, diluted, and endlessly repeated, what remains of it? Verdun, one of Barroca’s most enigmatic works, addresses that issue in sharp, raw terms. Using reedited footage from a documentary on that famous battle, the artist subtly questions the visual and emotional intensity of each image. His use of editing is quite peculiar, since there is no classification, order or hierarchy. It evokes more the articulation of drawing than the rhythm of film, without leaps or events, in a continuum where the images seem to take to each other, instead of opposing.

The choice lies with the spectator. The artist does not refuse that state of expectation; he tries to understand the strange fascination of images, showing us the image as it lies on the line that separates aura from trace, in its primary, original, mysterious state, barely readable yet, in that precise moment when it is not yet recognisable (or no longer recognisable), when it does not properly exist, in ontological terms.

Unaccompanied by numbers or statistics, unsupported by commentaries, devoid of ideological weight, images simply appear, leaving us alone with our perception of them. Consequently, notions like documentary and reality, recognition, understanding or judgement are discarded in favour of the image, of the image in its solitude, in its final, unpolished form. It is not negligible that this footage shows the remains of one of the most deadly battles in history.

The image “is a body unmaking itself”.

 

in:

“EDP New Artists Prize 2003”, Fundação EDP

ISBN 972-98926-4-4

 

 

 

 

A IMAGEM, ENTRE AURA E VESTÍGIO

Nuno Faria, 2004

 

A imagem está no centro da reflexão do trabalho de Daniel Barroca. Não se trata porém da imagem enquanto ícone, antes de uma imagem constantemente filtrada pelo corpo, o corpo próprio do artista, constantemente problematizada enquanto entidade material e emocional, enquanto presença e memória.

Um trabalho em vídeo, datado de 2000, é particularmente emblemático desse processo de desconstrução. Nele, diluído na imagem, o artista escreve num caderno enquanto que, em simultâneo, se ouve o som distorcido (alongado no tempo) de uma voz que lê um texto. O tempo da imagem foi também diluído de forma a dar a ilusão de que se trata de um filme em película.

Em Saurau (2003), o artista usa o som de um anterior trabalho também em vídeo (Vestígio, 2002) em que utiliza uma sequência de fotografias antigas. A presença da voz (enquanto murmúrio) e a duração das imagens (enquanto vestígio) remetem para um tempo passado, fixando iniludível e estranhamente uma relação com a morte cuja origem é incerta. Citando Walter Benjamin, Daniel Barroca pronuncia a seguinte frase no vídeo Inscrita (2001): “O problema original da linguagem é a sua magia”.

Assim se deve entender, no seu trabalho, o uso sempre sujeito a contaminação de diversos meios: a fotografia, o vídeo, o som, a palavra, a pintura. Se, por um lado, a fotografia tem um estatuto muito especial, “servindo de motor para o trabalho em desenho e em pintura” (Daniel Barroca seleccionou um determinado número de fotografias de entre centenas recolhidas em antiquários, ordenando-as por séries, trabalhando-as aprofundadamente, comentando-as, criando-lhes um contexto), estabelecendo um imaginário, se o vídeo é o meio operativo que melhor traduz o lento labor espaçio-temporal da imagem, parece ser o desenho a ferramenta que conceptualmente unifica o todo.

O desenho, ou antes, o acto de desenhar, assume importância determinante no processo de trabalho do artista. É através do desenho, entendido como obsessivo meio de indagação dos limites da linguagem, que Daniel Barroca tem vindo a processar a sua tarefa de imersão nos meandros obscuros da imagem.

Daniel Barroca trabalha pois em torno do vestígio. Filtrada da realidade a que originalmente se refere, rasurada, reenquadrada, esticada, diluída, incessantemente repetida, o que subsiste de uma imagem? Verdun, um dos seus mais enigmáticos ensaios, coloca com agudeza e crueza essa questão. Utilizando, remontadas, imagens de um documentário sobre a célebre batalha, o artista questiona com subtileza a intensidade visual e emocional de cada imagem. É peculiar a montagem. Ela não classifica, não ordena, não hierarquiza. Remete mais para as articulações do desenho que para o ritmo do filme, sem sobressaltos nem eventos, num continuum em que as imagens parecem afeiçoar-se mais do que contrapor-se.

Cabe ao espectador a decisão de escolher. Não se eximindo a esse estado de expectativa, tentando ele próprio compreender o estranho fascínio que exercem as imagens, aquilo que o artista faz é apresentar-nos a imagem exactamente na fronteira entre aura e vestígio, no seu estado primário, originário, misterioso, no limite da lisibilidade, exactamente no momento em que sendo algo ainda não recognoscível (ou já não recognoscível), não chega, no sentido ontológico do termo, propriamente a ser.

Não acompanhadas de números ou estatísticas, não suportadas por comentários, sem carga ideológica, as imagens surgem, somente, deixando-nos sós com a nossa percepção delas. Assim, noções tais como documentário e realidade, reconhecimento, entendimento ou julgamento são filtradas para se colocar o acento na questão da imagem, da imagem na sua solidão, no seu reduto último, em bruto. Que sejam filmagens dos despojos de uma das mais mortíferas batalhas de que há memória, não é indiferente.

A imagem “é um corpo que se vai desfazendo”.

 

in:

“Prémio EDP Novos Artistas 2003”, Fundação EDP

ISBN 972-98926-4-4

Circular Body

 

Circular Body
Daniel Barroca, De La Charge, Brussels, February 2015
Written dialogue between Daniel Barroca and Laure de Selys

L:  What are these two images and why are they spinning together?
D: Each one is part of a photo album. One is a picture of me as a child at the beach. The other one is from my father’s war album, the album he brought from Guiné-Bissau when he returned from the war in 1974. I found it hidden behind a picture of him with a couple of other Portuguese soldiers. I knew this image of him with the other soldiers in the album very well. But one day I realized there was a suspicious additional thickness behind it that made me open the plastic layer and pull it out. This is how I found the image I’m using here.

L: Can you describe this image?
D: It’s a black and white photograph of a young man beaten to death. He is lying on the floor, the belly uncovered, the t-shirt chaotically pulled up, his face broken by the brutal violence, his left arm randomly still, blood everywhere. I think I was 10 when I saw it for the first time and the explosion of emotions caused by the confrontation with that image was immediately swallowed in silence. I kept silent.

L: So exhibiting these two images today is about battling that silence.
D: I still don’t understand if I decided to keep this image with me or if it decided to stay with me. I guess I’m trying to formulate my relation with it.

L: There’s an animist touch in what you say. As if this photograph through its’ violence had a specific power. That it chose you as much as you chose it.
D: What I mean is that I didn’t choose to see it. I just saw it and that’s it. It’s an irreversible event in my life that conditioned my perspective on what an image is and then on everything that as to do with colonial history in general. The fact is that we stayed together until today.

L: In a way you mean that this image is part of your own personal and political historicity.
D: In other words, it inscribed itself on my body like an invisible tattoo. Like an image impregnated in my flesh, circulating in my veins.

L: It nearly sounds like it’s part of your own biology, a part of your DNA, a political DNA.
D: Yes, even though you almost never see it whenever you look at or feel about yourself, it is within you and you are under its’ influence since the day of that first gaze. But when you become aware of this, what is it exactly that stays in you  – the vision of that death? or something of that dead man himself?

L: I don’t really follow you. Is it possible that the existence of this image is not only a consequence of this man’s death but somehow an inclusive part of his murderer?
D: As an adult I asked again my father about the history of this image. He told me that it was the kind of image that used to circulate among soldiers, some kind of war pornographic imagery that was used to challenge the newcomers. So, in the context of the colonial war, this image was sold to young soldiers as to challenge their own existence as part of a community through the visual circulation of violence. Through the contamination of the gaze since the first moment they arrived.

L: So, you first grew up with the idea in the back of your head that your father may have taken part in the murderer of this man.
D: In the back of my head, yes…

L: Therefore, thinking that the conditions that annihilated him were the same that created you and that you were part of one same chronology of appearances and disappearances.
D: That the victim and the aggressor always coexist in you. That you are both.

L: What is this sound?
D: It’s the spinning of different metallic broken objects around my head. A slinger without the shot.

 

 

0201