Introduction

Subo a rua íngreme até uma das praças centrais. Entro numa livraria. O espaço é apertado e cheira a papel velho. Folheio os livros mais à mão. Sentado ao balcão está um homem de óculos pesados que escreve alguns apontamentos num caderno já a meio. Pergunto-lhe por livros de astrofísica. Não é a primeira vez que falamos. Ele levanta-se e vai à procura nas estantes. Fala comigo como se fosse consigo. Sou o expectador de um monólogo:

“O espaço e o tempo por exemplo. Você vai na rua e vai observando. Como é que vê o que se passa à sua volta? Como é que entende as coisas? Diz a si próprio que aquilo é ‘isto’ e que isto é ‘aquilo’. Não é?”

“Sim, na minha cabeça vão surgindo palavras para as coisas.”

“O que lhe digo é que a linguagem é como um filtro, percebe? Uma pessoa que nunca saia desse regime acaba por nunca aceder a um entendimento mesmo verdadeiro das coisas, não é?”

“Não sei. Diga-me primeiro o que é um entendimento verdadeiro das coisas.”

“O que eu quero dizer é que a linguagem condiciona. É como se em vez de perceber as coisas se percebessem as designações das coisas. Entende?”

“Sim, isso entendo.”

“Como é que uma definição dá conta da realidade ou como é que uma imagem representa a realidade? A mim parece-me que – e mesmo pensando na teoria – tudo isso de algum modo funciona como numa estória. Quero dizer que no fundo no fundo, tudo o que fazemos para compreender onde estamos e o que somos é criar planos e patamares dentro de uma enorme ficção. Planos de entendimento que se sucedem e encadeiam, que acabam por cobrir a realidade mas que são sempre outra coisa. Já estou para aqui a especular… Hahahahah!”

“Não está nada, eu gosto de o ouvir! O que me está a dizer é que as palavras funcionam sempre num plano ilusório. Que só podemos compreender o mundo através das ficções que elas engendram e que a teoria faz parte dessa coisa. Certo?”

“Sim. Ficção no sentido de construções mentais, de projeções em cima daquilo que vemos e tocamos incluindo a nossa própria existência. Projeções tão antigas, tão enraizadas na cultura e na nossa sociabilidade que se confundem com as coisas. Percebe?”

“Uau! Claro que percebo…!”

“O que eu digo é que se olhar para as coisas desta perspectiva tudo o que vê é uma montagem que a sua cabeça faz em tempo real. E uma montagem é algo tangível que se pode sempre modificar, remontar. Não é?!”

“Sim, tipo lego.”

“Isso. Diga-me então outra coisa. Se é através dessas construções que entendemos a verdade das coisas e essa verdade não é absoluta porque a podemos sempre remontar, então a verdade das construções que fazemos para pensar o mundo, ou a realidade tal como a apreendemos através da linguagem, é mesmo uma ficção. No fundo no fundo, não acha?”

“Dito assim… sim.”

“Está a ver como é que utilizo o termo ficção não está?”

“Sim, estou. Isso é muito apelativo do ponto de vista criativo. Tem um potencial incrível! É como se nada no mundo estivesse fixo. Como se tudo fosse passível de ser trabalhado e retrabalhado. Mas não acha que isso coloca tudo numa zona de relativismo muito perigosa? Parece que deixa espaços vazios que um poder de qualquer ordem acabará eventualmente por instrumentalizar, não acha?!”

“Não! O que eu digo é outra coisa. O que eu digo é: nada na verdade se fixa mesmo que o façamos através de uma definição. Mesmo que encontre definições e depois conceitos que lhe permitam trabalhar o entendimento de certas coisas isso não significa que essas coisas fiquem no mesmo lugar que estavam quando se chegou à definição. Chegar à definição, ou ao conceito, não é chegar à coisa. Entende?”

“Sim, estou a ver. Está a dizer que aquilo que a definição define escapa sempre à definição. É isso?”

“Sim, é isso. Que uma definição é como uma moldura, isola a coisa que designa do resto do mundo. Quando você faz um enquadramento, uma fotografia, um filme, não acha que é ingénuo dizer que está a mostrar a realidade tal como ela é? Mesmo que os outros vejam aquilo como um objeto documental aquilo não é a realidade, aquilo é uma versão da realidade materializada pelos meios de que você dispunha na altura em que fez aquele enquadramento. E isso para mim é como uma ficção. É um artifício que serve para fazer pensar sobre algo.”

“Sim, já falámos disso antes.”

“Aquilo que eu estava a dizer das palavras, das definições e dos conceitos é o mesmo ou parecido. Acho eu… é como dizer que precisamos de engendrar maneiras de nos situar no mundo, as artes, as ciências, isso tudo. E nos entretantos vamo-nos convencendo de que sabemos mesmo o que o mundo é…”

“Então é daí que vem ter dito que somos personagens ficcionais, é isso?”

“Sim, é isso. Não é que as coisas e as pessoas não existam. Obviamente que existem! Só que a maneira como organizamos esse existir na nossa cabeça parece-me ser assim que funciona. Somos micro ficções dentro da grande narrativa ficcional da humanidade! Hahahahahaha… está a ver a piada não está?”

“Estou a ver perfeitamente. Ou seja, eu chamo-me Daniel. Daniel Barroca. Nasci em Lisboa. Sou artista plástico. O que eu na verdade estou a dizer é que existo eu, e depois, um personagem ficcional chamado Daniel Barroca nascido em Lisboa em 1976. Ele é artista plástico e o trabalho que ele faz é uma ficção dentro desta ficção. E cada designação, cada tirada conceptual dentro desse trabalho são pequenas ficções dentro de uma e outra ficção. Isto significa que ele e tudo o que está implicado na sua existência são ficções articuladas por mim. É isso, não é?”

“O que eu lhe estou a dizer é que quando lhe perguntam o seu nome você responde: Daniel. Mas aquilo que você é mesmo não se reduz ao que essa palavra evoca. Esse é o nome da ficção que você é enquanto ser social e por aí fora… Agora, entenda isso como achar melhor. Essa ficção é de uma complexidade incrível, porque os seus gestos têm consequências, têm uma política e têm um corpo que é única e exclusivamente o seu. A política acontece sempre a partir das circunstância presentes. Acontece a partir das condições materiais em que se vive no presente e das verdades e mentiras que saem da boca das pessoas no presente. Depois tudo isso tem condições históricas, mas isso fica para outro dia. O que lhe estou a dizer agora é que a forma de estar na realidade, é construída por si próprio dentro da rede incomensurável de probabilidades que constitui todo o universo. É assim que o real funciona como uma ficção, é uma ficção que se vai escrevendo a cada passo e à qual você acrescenta a parte que compete ao seu personagem. Você nunca poderá transformar o mundo inteiro, o que pode é transformar-se a si e isso ser uma alavanca num processo de transformação mais abrangente. A sua existência é uma matéria que você vai trabalhando. E a consciência disso coloca-o a um nível de ação perante as possibilidades que a vida lhe oferece diferente do que se achar que a única coisa que pode fazer é seguir as indicações que lhe são fornecidas pelo poder. Eu diria que isto é o contrário de um relativismo porque o faz compreender melhor a tração do mundo. Entende? Aceitar a tração do mundo fá-lo compreender melhor a sua possibilidade de ação de acordo com essa tração. Se você viver alienado nas concepções de vida que lhe são fornecidas como sendo a realidade e abdicar da capacidade de as reinventar, aí sim você vive num estado de relativismo permanente porque se sente sempre sujeito a leis que desconhece ou que não compreende. Se compreender a ficção que vida é, não quer dizer que compreenda perfeitamente todas as leis às quais está sujeito porque de facto isso nunca vai acontecer, mas vai-se emancipar de ser remetido para a obscuridade das circunstâncias que se lhe apresentam como imutáveis. Dizer assim: eu vou escrever a ficção que é a minha vida. É na verdade sair da escuridão conflituosa de um jogo que joga sempre para perder em direção à luz sob a qual o seu gesto abre um espaço onde pode jogar em igualdade de circunstâncias.”

“Mas a vida não é um jogo pois não?”

“Claro que não. Ouça. Se compreender como é que se desenrola a ficção da qual você é um personagem, você será capaz de resistir ao que lhe é adverso sem sacrificar a sua capacidade de resposta. Ou seja, quando você compreender como é que tudo isto funciona para além dos episódios que o vão distraindo diariamente e sentir o poder do fluxo da vida, você saberá que a sua capacidade criativa de facto representa uma potência de transformação e irá aprender a utilizá-lo com imensa precisão.”